Garagem do Amílcar

O blog do Amílcar Filhoses, o Profeta do Agrotuning

09 setembro 2007

A tradição do 1º salário

Uma das coisas que mais me fascina, para além da crise do sector das furgonetas no Mali, é a tradição do primeiro salário. É que esta tradição é particularmente demente. Há os touros de morte, em que se matam touros por diversão. Há o banho do ano em que o pessoal vai no primeiro dia do ano tomar uma banhoca no mar. E há esta tradição que consiste em fazer gastos desnecessários e supérfluos, numa altura em que ainda não temos propriamente liberdade financeira para fazer as ditas “maluquices”.

Nunca cheguei muito bem a perceber a ideia de tudo isto. Esta atitude é tão inteligente como oferecer a alguém que foi operado ao ombro um jogo de dardos como prenda de melhoras. Está bem, é uma tradição, já entendi. Mas não deixa de ser estúpida por isso, ou deixa? Acompanhem o meu pensamento. Uma pessoa recebe o seu primeiro salário e pensa: “Olha, giro era mandar o salário para o galheiro e comprar um relógio que me dure a vida toda. Pelo sim pelo não, compra-se já o bicho e fica arrumado para o resto da vida. É como os crucifixos de ouro, mas sem o gadelhas ao pendurão.” Não faz sentido! Tudo isto para quê? Para poder dizer aos netos “Olha, vês este relógio aqui? Comprei-o com o meu primeiro salário. Para me recordar dos tempos em que era explorado”.

O problema nem é o relógio em si. É bem pior quando se emprega o primeiro salário em louceiros ou em trens de cozinha, variantes bem mais sinistras, diga-se de passagem. É o conceito. Quem terá inventado isto? De certeza que foi o mesmo gajo que se lembrou de associar ovos de chocolate à Páscoa. “Então, Páscoa… Páscoa, Páscoa… temos o Jesus que falece e depois diz que era a fingir. Temos um coelho que aprece não se sabe bem de onde… cá está. Coelho, ovo… de chocolate”.

É um facto: aceitamos tudo o que é tradição. Se alguém disser “Lá na minha aldeia tem-se por hábito comer bocadinhos de excremento de porco todas as últimas quintas de cada mês” é óbvio que vamos comentar que aquilo é no mínimo sinistro. Mas, se dissermos “Lá na minha aldeia é tradição comer bocadinhos de excremento de porco todas as últimas quintas de cada mês” o que vamos ouvir são comentários de “Ah, que giro, tão pitoresco. Temos de lá ir, Judite”.

Por isso apelo. Não se deixem levar por tudo o que é tradição. Está bem que não podemos ignorar o passado. Está bem que as tradições são estruturantes numa sociedade. Que sem elas não temos real identidade. Mas expliquem-me. Com estas tradições, para onde vamos nós?